Dialogando com Ângelo Peres sobre este Triste Início de Século

Rita Afonso
Rita Afonso

“Recuperar essa faculdade (de tornar possível amanhã o que hoje parece mpossível) tem como primeiro passo um reconhecimento penoso: vivemos nesse início de século imersos num mundo que nos coloca imensos desafios. E para isso estamos despreparados. Nos deparamos com uma crise profunda, tanto teórica como prática, que traz consigo a ameaça de pretendermos apenas administrar bem a crise apoiados em instrumentos formais de poder. Tornar possível o impossível é ultrapassar esses limites. E isso significa recuperar a capacidade de encontro e de estabelecimento de vínculos relacionais solidários, em meio a uma realidade social onde impera a fragmentação, o individualismo e o consumismo. Essa capacidade pode ser potencializada por nossa criatividade. Tornar possível o impossível não é ignorar a realidade efetiva. Mas é sim não nos deixarmos iludir com a pretensão de que pelo simples fato de que algo esteja sendo assim, deva assim ser.“  BARTHOLO (s/d).

Este artigo tenta um diálogo com um outro artigo publicado nesta revista pelo Professor Ângelo Peres. Nele, o professor fala da necessidade urgente de uma outra racionalidade que considere não somente o resultado lucro, tirando a relação empregado-empresa da total assimetria, submetida ao resultado financeiro; e aponta o RH como fundamental nesta trajetória. Aqui, o foco é o alargamento desta perspectiva, olhando, desde o mesmo lugar, empresas e projetos sociais e as dificuldades decorrentes da precarização generalizada do trabalho.

Triste início de século

Chegamos num momento da história do capitalismo em que suas próprias conseqüências estão levando a vida ao esgotamento: escassez de recursos, alienação, degradação ambiental, excessivo crescimento populacional, aumento da pobreza mundial, serviços sociais deficientes (Kotler, 1994). Tamanha é a complexidade das exigências impostas pela racionalidade vigente. A questão social está no centro desta discussão.

Mota (2005) clareia o debate sobre as origens do conceito de exclusão social, demonstrando a dificuldade de encerrá-lo fora de contexto, ou seja, o conceito perpassa as dimensões econômica, social, política e cultural. Aponta ainda para a desestabilização da sociedade salarial ocasionada pela precarização das relações de trabalho e sua conseqüente pressão sobre o sistema de proteção social.

Para Castel (1997) a discussão da questão social assemelha-se ao questionamento da função integradora do trabalho na sociedade e ao enfrentamento do problema relação (ou falta de relação) homem-mundo do trabalho. As formas de organização do trabalho agem sobre o sentir e o pensar dos trabalhadores e não raro, provocam-lhe sofrimento, angústias, medos e infelicidades (Dejours,1988).

Bursztyn (2001) sintetiza uma realidade cruel de ser enxergada, que necessariamente nos liberta de alguma alienação, nos revela frustrados com razão e nos acena com constrangimentos frente à incapacidade de dar conta da realidade do mundo. Ele olha as expectativas dos cidadãos ao final do século XIX, comparando-as, numa visão esquemática, ao final do século XX. Mostra-nos como e por que nos sentimos cruelmente sofridos, seja como trabalhadores ou como cidadãos. Segundo o autor, como expectativa geral, o final do século XIX foi marcado por uma visão otimista do futuro, pela perspectiva de condições de vida pautadas no bem estar, tendo o Estado como instância reguladora, acenando com a perspectiva da igualdade na tônica das relações entre grupos sociais. No final do século XX, a expectativa geral é de pessimismo e um certo mal estar pelo agravamento das carências; o mercado é a instância reguladora, acenando com a perspectiva de desigualdade e excluindo as regiões “desnecessárias” no globo terrestre. Lá, o progresso estava associado à idéia de geração de riquezas, aqui, o progresso é causador de impactos ambientais.

A síntese da racionalidade empresarial não aponta somente para a importância das políticas de RH e do papel crucial dos seus gestores na formulação destas  políticas, mas para a necessidade de sustentabilidade em todas as direções para onde olhemos e o RH não escapa a este olhar. Resultados financeiros, sim, mas ancorados, com igual peso, nos resultados sociais e ambientais.

Desta forma, o foco da relação empregado-empresa alarga-se um pouco para além do eixo cliente-consumidor e avança por uma necessidade de reputação que passa a ser o cerne das questões empresariais: diálogo ético e transparente com todos os stakeholders. A totalidade destes diálogos empresariais passam a ter como foco os resultados do tripé sócio-econômico-ambiental. Empresas pautadas em resultados financeiros olham o passado e não garantem mercado para si no futuro (Elkington, 2001). É necessário garantir o futuro.

O artigo do professor Ângelo Peres mostra uma das pontas que resultam da questão, mais complexa do que o RH possa dar conta: uma relação empresa – funcionário desumanizada e necessitando urgentemente de outros parâmetros, sob o risco de não obter resultados. Quando pensamos nesta racionalidade dentro das empresas, o assunto parece menos grave – embora não seja – do que estas mesmas observações fotografadas dentro do ambiente que originalmente questiona o modelo e serve para dar conta de suas externalidades, ou de suas indesejáveis conseqüências: os projetos e empreendimentos sociais.

A nova configuração econômico-política radicalizou situações de pobreza e vulnerabilidade social (MOTA, 2005). Criou expectativas submetidas ao lucro e ao individualismo e uma certa alienação. Chego a ficar tonta quando percebo algum aluno – dou aulas em cursos de gestão – achando o melhor dos mundos um emprego dentro de uma grande organização privada, onde é presenteado com um laptop e celular de últimas gerações, o que lhes faz passar 24 horas do dia disponível para seus empregadores. Também a gestão de RH, estrategicamente, formulou planos de cargos e salários capazes de dar ao assistente de ontem, o status de gerente júnior (com algum nome em inglês agregado ao título do cargo) de hoje; cobrando-lhe alto por isso.

No âmbito dos projetos e empreendimentos sociais, formados por cidadãos que habitam o mesmo tempo-espaço que os agregados ao universo empresarial, a questão parece ainda mais candente. Cobertor curto, movimentos que vieram a questionar, em sua origem, o modelo que hora se desvela, utilizam a mesma racionalidade e expediente para tratar problemas de exclusão social, geração de trabalho e renda, educação, entre outros. A racionalidade posta não muda, mudam os atores. Contratação sem carteira assinada; premissa da mais valia;  apropriação dos trabalhos de comunidades pelas classes médias,  que lucram com esta apropriação; condições precárias generalizadas; jornadas extenuantes,  achatamento de salários. Usa-se a mesma racionalidade que o professor Ângelo chamou de Pós-industrial para cobrir os pés de uma questão que tem, ao mesmo tempo, a cabeça de fora.

O centro do poder e os satélites

Bartholo (s/d) afirma que as grandes empresas estão no centro da teia do poder e tudo o que orbita em volta dela está, de certo modo, submetido e vinculado ao seu dinamismo. Neste sentido, o discurso empresarial do desenvolvimento sustentável, e ainda o discurso de muitos projetos sociais têm, na prática, sido reduzidos à manutenção da própria teia, onde as elites estão no centro das decisões de poder e o que orbita em volta, satelitizado, serve a este fim, mesmo que se tenha a ilusão de não estar pactuando com o estabelecido.

As associações no âmbito da responsabilidade social entre mercados, dos mais diversos, e projetos sociais, remontam o início da industrialização (no sentido da precarização da relação de trabalho) e o momento contemporâneo (no sentido que nos coloca Bartholo e Peres), sem que isto sequer seja percebido e pior, isto está sendo valorizado. E ao “parceiro” satélite, são impostas velocidade e  qualidade que resultam em um trabalho relacional “industrializado” no pior sentido da palavra, contrapondo produção seriada, produtividade e rentabilidade aos apregoados desenvolvimento sustentável e ética.

Pela racionalidade que guia estas iniciativas (tanto faz se chamada de pós-industrial, pós-moderna, neoliberal), estamos, no máximo, incluindo economicamente estas populações. E se é verdade que os recursos não sustentam o nível de consumo no médio prazo (Brundtland, 1998), incluir desejos nos recém incluídos vai no caminho oposto ao “mundo melhor”.

Estamos vivendo uma sociedade fragmentada, que resulta de um somatório de minorias, mantidas em isolamento e conflito por sua condição, sem a possibilidade de exercer qualquer hegemonia. Neste processo, o povo se desenraiza da idéia de uma causa nacional. Este quadro faz escassa a capacidade de poder destes grupos. A solução não está nas empresas. É preciso muita crença para ser otimista.

Referências Bibliográficas:

BARTHOLO, Roberto. A pirâmide, a teia e as falácias – sobre modernidade industrial e desenvolvimento social. Texto escrito para o curso Gestão de Iniciativas Sociais, UFRJ/COPPE, LTDS/SESI,Rio de Janeiro, sem data.

BRUNDTLAND, Gro Harlen. (presidente)/Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro comum. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1988.

BURSZTYN, Marcel (org). Ciência, Ética e Sustentabilidade: desafios ao novo século. 2 ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2001.

CASTEL, R. As Armadilhas da Exclusão. In: BELFIORE-WAANDERLEY, M; BÓGUS, L.; YAZBEK, M.C. (orgs). Desigualdade e a questão social. Rio de Janeiro: Garamond, 1997.

DEJOURS, Chistophe. A Loucura do Trabalho: estudo da psicopatologia do trabalho. Tradução Ana Isabel Paraguay e Lúcia Leal Ferreira. São Paulo:Cortez – Oboré, 1988.

ELKINGTON, J. Canibais com garfo e faca. Rio de Janeiro: Makron, 2001.

KOTLER, Philip. Administração de Marketing: análise, planejamento, implementação e controle. Tradução Ailton Bonfim Brandão. 4 ed. São Paulo: Atlas, 1994.

MOTA, Carlos Renato (coord.). Questões Sociais Contemporâneas. ABEGÃO, Luís Henrique;  GONÇALVES, Heloísa Helena; MOTA, Carlos Renato. Brasília: SESI/DN, 2005.

Peres, Ângelo. As Implicações da Gestão de RH na Era Pós-Industrial.Os Impactos do Neoliberalismo e das Relações Comerciais no Trabalhador. In: Rhevista RH. Online: <https://www.rhevistarh.com.br/portal/?p=1227>, consultado em abril de 2007.

Sobre a autora:

Rita Afonso é Pesquisadora do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social – LTDS – da COPPE/UFRJ, no Programa de Engenharia de Produção. Mestre e doutoranda na mesma instituição e programa. Professora convidada pela Universidade Federal de São João Del Rey – UFSJ, no curso de Especialização em Gestão de Negócios. Professora Tutora do FGV ONLINE.  Consultora do SEPRORJ – Sindicato das Empresas de Informática do Estado do Rio de Janeiro, onde implanta o Programa de Responsabilidade Social.

e-mail: ritaafonso@globo.com

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